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Em algum museu do Rio de Janeiro, num futuro não muito distante.

Lima: Opa, amigo, boa tarde. Você sabe em qual andar se encontra a exposição de carnaval?

Odair: Boa tarde, senhor. Essa exposição fechou no último domingo. Em cartaz só esta mesmo e a da terceiro andar sobre artistas latinas contemporâneas.

Lima: Poxa, achei que ela ficaria até o fim do mês… que droga, precisava escrever sobre essa exposição…

Odair: escrever? O senhor é jornalista?

Lima: Não…sim…(surpreso, pois tinha tempo que Lima não se apresentava como jornalista) Bom, sim e não. Sou jornalista de formação, mas atuo como crítico de arte já tem uns bons longos anos. E como está virando moda ter exposições de carnaval pela cidade, estava querendo escrever sobre essa que ouvi falar bem nas últimas semanas.

Odair: Ah, bacana chefe. Perguntei pois tiveram muitos jornalistas por aqui pra essa exposição, inclusive aquele famosão da Globo, um branco alto, sabe? Esqueci o nome… um que fala meio grosso… mas enfim, bombou essa exposição aqui.

Lima:  Olha só, não estava sabendo que tinha bombado.

Odair: Bombou à beça. Nos dias que ficava lá na sala no meu turno da tarde, sempre tinha gente. E foi legal, porque depois da pandemia não tinha visto mais uma sala assim cheia. Mas sem querer incomodar o senhor, já incomodando… por que disse que está na moda ter exposições de carnaval? No que me lembro, pelo tempo que trabalho aqui, essa foi a primeira, se não tô enganado.

Lima: Não incomoda não, imagina. O senhor trabalha como segurança aqui já tem muito tempo?

Odair: Bota tempo nisso… acho que entrei aqui foi 2012.

Lima: Pois é. Para o senhor entender: só no ano passado tivemos três exposições aqui no Rio que apresentaram o que foi produzido visualmente em desfiles.

Odair: Com todo respeito, meu camarada: mas é pouco, não? Pelo tanto que a nossa cidade respira carnaval o ano todo, pelo tanto que aquilo que vemos lá no sambódromo ser de belezas, ensinamentos e sabedorias infinitas… devia ter exposição de carnaval o tempo todo. É o maior espetáculo da terra, amigo!

Lima: Sim, mas não foi você mesmo que disse lembrar ter sido a primeira exposição de carnaval nesse museu, mesmo depois de tanto tempo trabalhando aqui? Não era nada comum vermos fantasias, partes de alegorias, peças visuais, etc. em espaços como esse aqui: museus, galerias, centros culturais. No máximo você via umas exposições de fantasias em shoppings. Lembra disso, é da sua época? (Odair assentiu efusivamente com a cabeça) Para se ter uma ideia: uma das primeiras exposições que se tem conhecimento em um espaço de arte foi em 1983, na Cesar Aché, uma galeria de arte em Ipanema. Foi apresentado ao público peças do desfile do Fernando Pinto para Mocidade, o desfile “Como era verde meu Xingu”. Só tenho notícia de nova exposição de carnaval sete anos depois com Salgueiro e Rosa Magalhães na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. De 1990 pra cá temos pouquíssimos exemplos dessa inserção da visualidade do carnaval em espaços institucionais de arte. Então por isso digo que recentemente tem virado moda: repito, tivemos três exposições somente em um ano em nossa cidade.

Odair: E por que, hein?

Lima: Por que o que? Ter poucos exemplos ao longo desses 40 anos ou eu achar ter virado “moda” recentemente?

Odair: Ter poucos exemplos.

Lima: (Lima mais uma vez surpreso pela curiosidade e pelo papo que ali se estava tendo) Claro que há variáveis, mas sinceramente? Respondendo de forma bem objetiva: por que carnaval é cultura popular e tudo que é feito pelo povo e para o povo é visto como perigoso por essas elites que mandam nesses espaços. E elite deseja a perpetuação da hegemonia, de hierarquizar o diferente. Você acha que uma festa que foi e ainda é pensada, produzida e vivenciada dominantemente por pessoas pretas, terá lugar fácil e de destaque nesses espaços que buscam categorias, hierarquizações, continuidade colonial? Paira uma teimosia em acreditar em um etnocentrismo, desqualificando e pormenorizando o outro: o outro cultural, outro racial, outro “existir”. E cultura popular foi por muito tempo vista como algo menor, inferior, justamente por ser desse “outro”, entende?

Odair: Se empolgou, né chefia? (Odair ri) Ficou até falando difícil aí. Mas entendi tudo. Você acha que não sei? Amigo, sou o segundo mestre-sala de uma importante agremiação aqui do Rio. (Odair ri um pouco mais). O que fazemos não é enxergado como arte ou quando é, somos artistas até a página 2. Ser “outro” está no meu cotidiano. E se arte não é valorizado em nosso país, como eu sempre ouço em conversas por aqui nessas salas – porque eu ouço, viu? Por mais que nem me olham muitas das vezes -, que dirá aquilo que por constantemente nem é entendido como arte. Arte digna de ocupar esses espaços, espaços de dança, espaços de músicas institucionais. Ai de mim se eu não tiver esse trabalho para sustentar minha família.

Lima: Pois é… lamentável… (Lima não cansa de se surpreender. Mas por que será tanta surpresa?)

Odair: E olha que quando digo que precisamos ocupar esses outros espaços, não estou falando de uma certa validação da arte que produzimos por essas instituições. Já encontramos em nossas escolas de samba e em nossos desfiles o lugar que sempre ocupamos de validação de nossos saberes e intelectualidades. O que me espanta é que mesmo com grande parte da população do Rio de Janeiro vivendo e produzindo

diariamente em larga escala a arte do carnaval, esses nossos museus e galerias daqui ainda abrem muito pouco as portas para as nossas visualidades em seus espaços. Acho que a questão não está em entender o carnaval somente como arte, entende? mas por essas outras possibilidades fazer com que as escolas de samba sejam vistas e respeitadas pela sua multiplicidade de saberes, pela riqueza e complexidade; e não só entendidas como festa, entretenimento, “cultura popular” – no pior dos seus significados. Voltamos àquilo da cultura popular e do “outro”, né?

Lima: Voltamos!

Odair: Viu chefia? Viu como sei também falar difícil?

Lima: Só ouvi verdades.

Odair: Mas falando sério agora, entendo também que há outras dificuldades ou como você falou, “variáveis” (Odair faz o sinal de aspas com as duas mãos). Não sou entendido nessas coisas de artes visuais e exposições não, mas acredito que deva ser bem difícil trazer um desfile para um espaço como esse aqui. Tudo se perde tão rápido já na avenida…. tão efêmero.

Lima: E toda a festa é pensada e produzida para ser efêmera, né? Fico sempre pensando que essa dificuldade dos museus incorporarem a visualidade do carnaval em seus acervos ou mesmo de realizarem exposições tem semelhança com as performances no mundo da arte contemporânea, sabe? Aquilo que ocorre apenas uma vez em determinado espaço e tempo, da necessidade de atenção ao presente. Como transformar isso em um objeto que seja vendável, no caso das performances, e preservado, no caso do carnaval? É claro que se recorre às fotografias e às filmagens. Mas será que dão conta da complexidade da vivência do aqui e agora? Acho que não…

Odair: Jamais, meu amigo. Aquilo que estava na exposição na sala de cima é outra coisa! É muito legal ver esses espaços sendo ocupados de vida carnavalesca, mas é outra parada. Por isso que às vezes que ao mesmo tempo acho que é super massa essas exposições, outras fico me perguntando se não está se falando de outra coisa quando essas peças ou imagens dos desfiles estão alheios a tudo que os cercam: dança, samba, 3.0000 pessoas fantasiadas, outras milhares assistindo…

Lima: Ah, é outra coisa! Mas por que não ser também outra coisa? Tendo cuidado e respeito com as particularidades Tendo atenção às subjetividades, às diversidades, ao

que as escolas de samba e seus artistas desejam e almejam com esses deslocamentos, acho que vale a pena ser outra coisa.

Odair: É…

Lima: Isso me lembrou da exposição que te falei da Rosa Magalhães e Salgueiro no Parque Lage que aconteceu em 1990. Já naquela época a Rosa falou em entrevista que estava se tomando o devido cuidado para transmitir toda a versatilidade do desfile. Ela já entendia que as obras, em outro espaço-tempo que não o Sambódromo, podiam ganhar novos entendimentos e se desvirtuar daquilo que foi pensado originalmente. Então a exposição tinha fantasias, partes de alegorias, mas também desenhos e croquis, instrumentos, vídeos de todo o processo do barracão durante o ano e também do desfile. Acho que é assim que deve ser uma exposição de carnaval de Escola de Samba.

Odair: Com todo respeito, mas terei que discordar do senhor. Concordo que com a devida atenção e cuidado, podemos ver cada vez mais exposições levando nossa cultura, nosso cristalzinho para outros lugares. Mas acho que não precisa – e mais, não pode! – se ter só um jeito de falar da arte do carnaval não. A chefia acabou de falar que os desfiles e as escolas de samba são complexos, tem muitas particularidades, muitas frentes. Se ficarmos só em um jeito de falar de carnaval nesse mundo da arte contemporânea, perdão… estamos lascados. Estaremos fadados “ao mais do mesmo” (Odair volta a realizar com as duas mãos o movimento das aspas). E “mais do mesmo” (mais uma vez, aspas) pelo pouco que vi trabalhando aqui, é descartado em dois tempos. Imagine com algo que ainda nem visto direito como arte é?

Lima: Você tem razão.

Odair: Lembro da vez que sai direto daqui e fui prestigiar uma amiga minha que foi entrevistada para uma exposição do Leandro Vieira no Paço Imperial e na Central do Brasil. Você chegou a ver essa? Lembro que ela buscou falar das fantasias do Leandro pelos dez desfiles que ele já tinha realizado. Agora imagine, meu camarada: uma exposição sobre fantasia que não tinha nenhuma fantasia! Fiquei impressionado. Se pensarmos pela sua lógica do melhor modo de fazer exposição de carnaval, esse não seria um bom exemplo.

Lima: Mas…

Odair: Mas é isso! A ideia desta exposição era apresentar a produção visual do Leandro Vieira como arte contemporânea mesmo. Foi um jeito diferente de se fazer. Não sou crítico para dizer se melhor ou pior que outras, mas acho que foi uma maneira de apresentar a parte visual do carnaval também com todo cuidado e respeito às particularidades da festa.

Lima: Interessante você dizer isso, meu amigo. Posso chamá-lo de amigo? (Odair assentiu com a cabeça, mesmo achando engraçado tal formalidade) Isso me fez lembrar o quanto em nosso mundo da arte contemporânea vem questionando o modo como os parangolés do Helio Oiticica ou os bichos de Lygia Clark tem sido expostos em museus e galerias. Assim como as fantasias de carnaval, essas obras foram criadas para ganhar vida com corpo, com movimento. Elas, também como as fantasias, só se completam, ganham vida plena, quando animada por corpos, por pessoas. Se conseguimos hoje em dia discutir mais profundamente sobre o modo de exibir essas obras, como não havia pensado isso para as fantasias de carnaval? Presas a um cabide, a um manequim, inanimado, sem vida…

Odair: Mas isso não quer dizer que a exposição que você falou do Salgueiro e da Rosa Magalhães esteja errada em levar suas fantasias para a exposição. Acho que é apenas outra maneira de se pensar esses deslocamentos. Nessa do Paço e Central a ideia de tratar como arte contemporânea faz com que todas as questões pensadas por vocês desse mundo precise ser levado também em consideração ao realizar uma exposição de carnaval.

Lima: Certíssimo!

Odair: Sou da dança, da ginga, do leque, do riscado – e também da segurança -, mas até que levo jeito pra isso, não?

Lima: É o poder da arte que corre em nossas veias, cada um à sua maneira.

Odair: E vem cá, pensando no que você falou dessa coisa de efêmero, de coisas que só se completam quando utilizadas, vestidas… fazer uma exposição de carnaval não é brincadeira mesmo não, né?

Lima: Olha, rapaz. Além de enfrentar todo aquele preconceito, todo racismo, toda hierarquização de linguagens que estávamos comentando antes, ainda precisamos levar em consideração toda essa dificuldade de transposição da obra original para um outro espaço. O carnaval é obra desfilada, é dinâmica. Vemos todo esse visual do carnaval desfilando em procissão. E ainda: a obra precisa dos mais 3.000 componentes da Escola para que se aconteça em avenida. Pense no desafio que é levar essa visualidade para um museu, uma galeria de arte, sem que se perca uma das mais importantes características que comentamos, que é essa efemeridade?

Odair: Pensando na seriedade que esse assunto carrega, realmente é um grande desafio.

Lima: E aí coloco mais tempero nesse feijão: como você já mesmo disse, as Escolas são formadas por muitos saberes, a arte da dança, do corpo, do canto, da música. O visual só é mais uma arte que integra esse corpo complexo que é uma agremiação. Desmembrar uma parte do seu todo pode requerer cuidados mais específicos ao ser levado para uma galeria de arte do que obras realizadas sem necessidade de desintegração do todo. Piora ainda se lembrarmos que o carnaval é uma obra coletiva. Além da criação do carnavalesco, a parte visual para existir necessita de muitas mãos. Como apresentar esse tipo de fazer coletivo em um sistema de arte ainda elitista e europeizado que insiste em eleger apenas um nome como protagonista?

Odair: Isso é trabalho para vocês, meu camarada!  Estando ou não na moda esse trem de exposição de carnaval, desafios estão aí para serem enfrentados. Talvez não tenhamos todas as respostas tão facilmente, talvez nem sequer tenhamos respostas. Mas é necessário enfrentamento. Nós, do lado de cá do mundo do samba, enfrentamos diariamente tudo e todos para entregar a manifestação de excelência que são as Escolas de Samba e seus desfiles. Esperamos daqui que vocês façam o mesmo quando pretendem levar nossa arte para outros cantos da cidade.

Com a permissão da chefia, posso eu mesmo te responder a pergunta que te fiz lá no início de nossa prosa?

Lima: Claro, sobre a questão porque disse que está na moda?

Odair: Sim, sim. Acredito que, para além de tudo que conversamos, esse “estar na moda” é fruto de uma conexão do carnaval e de suas agremiações com seu tempo contemporâneo. As escolas de samba e seus agentes não estão – e nem podem ser vistos como – descolados ou apartados de seu tempo. Havendo uma abertura desse dito sistema de arte para as múltiplas linguagens artísticas, por que não pensar na possibilidade de inserção e exibição da visualidade do carnaval em seus espaços, respeitando, claro, limites, particularidades, contradições, mas sobretudo a íntima relação com seu destino original, os desfiles no Sambódromo? As escolas são instituições vivas, complexas, forjadas nas contradições, mas sobretudo em diálogo com seu próprio tempo. Muitas das questões que aqui falamos conversam com o que vem sendo discutido atualmente no campo político, artístico e social da cidade e do país, principalmente quando falamos em reescrever histórias dos que foram invisibilizados e desqualificados. Ser efêmero, ser registrado, ser reutilizado, ser inserido em outros espaços é ser carnaval. E ser carnaval é ser diverso.

Falei bonito?

Lima: Falou tudo!

Odair: Largo em 20 minutos. Topa uma gelada depois daqui?


Foto do cabeçalho

Oscar Liberal